O novo 'tempero' para o jornalismo sem diploma

Presidente do STF comparou jornalismo a culinária e reacendeu debates sobre futuro da profissão


Apito na boca e chifrinho de diabo na cabeça. Não é carnaval no Rio de Janeiro, mas o pequeno grupo reunido em frente à antiga sede do Supremo Tribunal Federal chama a atenção de quem passa pela Avenida Rio Branco. Fantasiados, ali estão jornalistas e universitários, que protestam contra a decisão tomada pelo STF no último dia 17, quando os ministros aprovaram o fim da obrigatoriedade do diploma universitário para exercer profissionalmente o jornalismo no país. A fantasia representa o ministro presidente do Supremo, Gilmar Mendes, relator do processo; para os manifestantes, um “demônio” que ameaça os profissionais da imprensa e também a sociedade brasileira. Uma luta parecida com a de vendedores ambulantes que, do outro lado da avenida, também protestavam naquele 1 de julho; naquele dia, camelôs e jornalistas se mobilizavam pelo mesmo motivo: a regulamentação de suas profissões.

Para os oito ministros do Supremo que votaram a favor da nova regra (contra apenas um voto contra) para o exercício do jornalismo, a obrigatoriedade do diploma impedia a liberdade de expressão. Além disso, segundo os magistrados, a profissão não exige conhecimentos técnicos específicos, se comparada à Medicina ou à Engenharia, por exemplo. Apesar de o assunto só ter ganho espaço relevante na opinião popular com a divulgação da última notícia, o debate já existe há muito tempo nas faculdades e virou caso na Justiça em 2001. No final daquele ano, o Ministério Público Federal determinou a não-obrigatoriedade do diploma em todo o território nacional. Entre indas e vindas, a decisão valeu por mais quatro anos, até que, no final de 2005, o Tribunal Regional Federal da Terceira Região (TRF-3) atendeu às reclamações da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), tornando mais uma vez obrigatório o diploma nas redações. Finalmente, em março de 2006, a discussão foi parar no Supremo, até ser votada no último dia 17, colocando um ponto final na discussão. Para a maioria dos jornalistas, entretanto, o episódio não passou de um ponto parágrafo. A notícia foi recebida com indignação pela Fenaj e o coro dos insatisfeitos é engrossado por nomes como Alberto Dines, Ricardo Noblat, além dos universitários, que acreditam na virada do jogo.

Nesse coral de jornalistas, a diretora da Escola de Comunicação da UFRJ, Ivana Bentes, canta em outro tom. A professora, jornalista diplomada, não concedeu entrevista para essa reportagem, mas sempre se manifestou ampla e publicamente contra a obrigatoriedade do diploma. No dia da votação no STF, Ivana postava em seu Twitter, seguido por mais de 500 usuários: “Exigência do diploma para jornalismo está caiindo na votação do STF. Good bye corporações fordistas...viva autônomos e precariado cognitivo” (sic). Para a professora, a luta pelo diploma obrigatório segue uma linha de pensamento baseada em discursos da Revolução Industrial e o mundo pós novas mídias digitais exige uma nova forma de organização (ou uma desorganização) do mercado da comunicação. “Os jovens precários das economias criativas estão reinventando as relações de trabalho, os desafios são enormes. A economia pós-Google não é a Globo fordista, não vamos combater as novas assimetrias e desigualdades com discursos e instrumentos da revolução industrial”, escreve a professora em seu artigo publicado na revista Carta Capital e no blog Trezentos. Para ela, entretanto, a mudança chega para valorizar ainda mais a formação superior: “Acabou o diploma de Jornalismo, mas a formação de Comunicação nunca foi tão importante! Vamos agora pensar o jornalismo público, o jornalismo do comum!”, continua o texto da professora. O discurso de Ivana tem um tom revolucionário e indica que algo está mudando no jornalismo e as próximas gerações de profissionais – diplomados ou não – devem sentir e viver essa revolução de dentro do turbilhão.

Em um colégio na zona Norte do Rio de Janeiro, os indecisos alunos do terceiro ano do Ensino Médio que querem prestar vestibular para jornalismo veem a decisão do Supremo como mais um fator para aumentar a dúvida sobre qual carreira seguir. Mas, para eles, apesar da mudança na lei e da transformação por que passa a mídia, com novos meios de comunicação, o diploma vai continuar a fazer diferença, mesmo sem ser obrigatório. “Cheguei a pensar em desistir da faculdade de Jornalismo e fazer letras, mas agora começo a pensar que o diploma pode fazer diferença na hora de conseguir um emprego”, conta Danielle Garcia, de 18 anos. Já Elisângela Machado, de 17, acha um absurdo disputar uma vaga no mercado com “pessoas que não se prepararam para trabalhar naquela profissão” e espera aprender, na faculdade, técnicas que a auxiliem a se formar uma profissional de qualidade. “Não quero só aparecer na TV, acho que seria legal trabalhar numa redação e, quem sabe, poder influenciar a sociedade de alguma forma, ampliar a visão das pessoas. Sei que a mídia tem esse poder”, planeja a estudante. Todos concordam que o jornalismo que vão encontrar vai ser influenciado pelas novas tecnologias de comunicação, mas acreditam que “na essência” a profissão será a mesma e uma especialização na faculdade, portanto, ainda vai ser fundamental.

As tais técnicas a que Elisângela e suas colegas pretendem ter acesso não são muito claras para as alunas. Prestes a escolher a carreira que irão seguir, a noção do que é de fato jornalismo ainda é turva para a maioria dos estudantes, percepção que se estende à sociedade de uma forma geral, segundo a avaliação do coordenador do curso de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Leonel Aguiar. “A visão do STF é a visão do senso comum da sociedade brasileira em relação à prática do Jornalismo. A maior parte das pessoas entende que o Jornalismo é simplesmente um lugar de opinião, quando na verdade se trata de um espaço de produção da informação, algo muito mais complexo”, comenta o professor, que é defensor da exigência da formação superior. Para ele, a pesquisa realizada pela Fenaj que aponta que cerca de 75% da população é a favor da obrigatoriedade não indica uma conciência sobre a importância da profissão, mas sim o reflexo de uma sociedade que sempre deu valor ao título de bacharel. Segundo o professor, iniciativas como o evento "PUC por Um Dia", realizado na Universidade para esclarecer estudantes do Ensino Médio sobre o jornalismo e outras carreiras, ou ainda as revistas e programas de TV sobre o dia a dia da imprensa, podem ajuar nesse trabalho de conscientização da população sobre a função social do jornalismo, mas, na avaliação dele, trata-se de um trabalho de médio e longo prazo.
Contrariando o STF e também a Associação Nacional dos Jornais, que afirmam que a profissão não é uma atividade técnica, Leonel Aguiar destaca pontos importantes discutidos nos bancos de uma faculdade que são, para ele, fundamentais para a formação de um bom profissional. Na lista, o professor inclui cinco pontos principais que “constroem” um jornalista de qualidade. Na parte teórica, Aguiar é defensor de uma grade que aborde as ciências humanas e sociais, com disciplinas como Antropologia e Sociologia, além do estudo das Teorias da Comunicação. No que diz respeito ao instrumental da profissão, o aperfeiçoamento do domínio da língua portuguesa é essencial segundo a avaliação do professor. Ainda de acordo com o coordenador, debates sobre ética – cidadã e profissional – são também muito relevantes, quando abordados sob uma visão interdisciplinar. Todo esse conteúdo, finalmente, deve ser arrematada por experiências práticas que habilitem o futuro jornalista, ainda na faculdade, a trabalhar com os diferentes suportes de comunicação, como jornal, rádio, internet e televisão.

Para o professor, que é também diretor científico do Fórum Nacional dos Professores de Jornalismo, essa capacitação é a principal função e missão da faculdade de jornalismo e da regulamentação da profissão. Leonel Aguiar não concorda com o argumento de que a exigência do diploma limita o acesso aos meios de comunicação. “Quero que essas pessoas me apontem um caso do tipo: 'o Movimento dos Sem Terra tinha um jornal que foi fechado porque o Sindicato diz que tem que ter um jornalista responsável pelo jornal!'. Não conheço nenhum caso assim”, argumenta. Na PUC, onde são oferecidas bolsas de Ação Social, se formou toda a equipe do jornal O Cidadão, jornal comunitário que circula no Comlexo da Maré, composto por 16 favelas e habitado por uma população carente. Para ele, esse é um exemplo de como a formação universitária pode caminhar junto aos movimentos sociais. “O exemplo do jornal O Cidadão é excelente. Algumas dessas pessoas que foram minhas alunas aqui já até foram editoras do jornal antes de ingressarem na faculdade. Elas não vieram pra cá só por causa do diploma, mas porque reconheciam a importância do conhecimento aprendido aqui, que poderia trazer um retorno para a comunidade”, afirma Aguiar.

A questão do mercado

Com a mudança na legislação, a saída certa especulada pelos principais meios de comunicação é a chamada auto-regulação da imprensa, um sistema espontâneo, que, agora a partir de um universo bem mais amplo de profissionais, selecionaria os melhores, independente de habilitações específicas. Em seus artigos, a professora Ivana Bentes comemora a nova lei, prevendo uma abertura do mercado para jovens talentosos, formados em outras áreas da Comunicação Social, como cinema e produção editorial. “O fim do diploma tira da 'invisibilidade' a nova força do capitalismo cognitivo, as centenas e milhares de jovens free-lancers, autônomos, midialivristas, inclusive formados em outras habilitações de Comunicação, que eram impedidos por lei de fazer jornalismo e exercer a profissão”, escreve Bentes. Para ela, agora o caminho dos novos profissionais é “criar mercados”, em vez de se transformarem em “peões diplomados”, sujeitos às variações das empresas de informação.

De acordo com o site O Jornalista, que realizou uma pesquisa sobre as legislações dos principais países, o sistema já funciona na maioria deles. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde o curso superior não é exigido, cerca de 75% dos empregados são formados. O mesmo ocorre na Alemanha, onde, segundo o portal, a competitividade é alta e, por isso, os próprios profissionais buscam a especialização para garantir vagas no mercado. Ainda de acordo com informações do site, a Itália de destaca entre os países ricos. Naquele país não há uma legislação clara sobre a exigência, mas o presidente da Ordem dos Jornalistas (ODG, na sigla em italiano), Lorenzo del Boca, é favorável à regulamentação, elogiando, inclusive, o modelo que vigorava até então no Brasil. Independentemente de boas experiências em outros países, para a presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio de Janeito, Suzana Blass, a nova lei coloca o poder nas mãos dos “patrões”. “O Brasil tem uma tradição de profissões regulamentadas e as forças aqui ainda não são democráticas o suficiente para haver auto-regulação. Acho que nosso trabalho como sindicalistas vai ser mais necessário do que nunca tentando unir jornalistas de diferentes origens e garantir as conquistas trabalhistas conseguidas até hoje”, afirma Blass, que também é jornalista do jornal carioca O Dia.

De fato, a mudança na lei obriga os estudantes a buscarem cada vez mais a qualificação. Apesar de estar presente e até ter ajudado a organizar o protesto narrado no início desta reportagem, a estudante Lívia Lamblet, aluna do sétimo período do curso de Jornalismo das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), afirma que defende a obrigatoriedade pelo bem da sociedade, e não porque se sentiu afetada na busca de uma oportunidade no mercado de trabalho. “Confio na minha capacitação. Além do que aprendo na faculdade, domino vários idiomas e acho que não vou ter problemas para conseguir um emprego. Estou aqui pelo direito da sociedade de ter um jornalismo de qualidade”, afirmou.
De lados opostos na discussão do diploma, Ivana Bentes e Leonel Aguiar – diretores de duas das escolas de Comunicação Social mais renomadas do Rio de Janeiro – acreditam que a decisão do STF não significa o fim das faculdades. “Na publicidade e cinema essa obrigatoriedade não existe e a procura é bem grande. No jornalismo era obrigatório porque as relações de trabalho nessa área são um pouco diferentes”, pondera Aguiar. Já Ivana argumenta: “A qualidade dos cursos e da formação sempre teve a ver diretamente com projetos pedagógicos desengessados, com consistência acadêmica, professores de formação múltipla e aberta, diversidade subjetiva e não com 'especificidade' ou exigência corporativa de diploma”.
No último 1 de julho, dia do “mini-protesto” da Avenida Rio Branco, era protocolada no Senado uma Proposta de Emenda Constitucional, apresentada pelo senador Antônio Carlos Valadares. A alteração na lei prevê a volta da exigência do diploma, mas admite a figura do colaborador, um especialista autorizado a escrever artigos e assinar colunas, sem vínculo empregatício com o jornal, situação que sempre foi comum no jornalismo brasileiro. Para a sindicalista Suzana Blass, lutar contra a decisão do Supremo é mesmo a única solução. Apesar disso, admite que o Sindicato vai se reunir no próximo dia 17, para definir o que muda com a nova legislação e decidir, por exemplo, o que fazer com os possíveis jornalistas sem diploma que poderão ser empregados por jornais e, provavelmente, tentarão se sindicalizar.

Os sindicatos estão fazendo barulho, os estudantes mostram insatisfação, mas a análise do panorama indica que a lei veio pra ficar. O Supremo diz que a decisão é irreversível e os próprios profissionais já começam a pensar no futuro da profissão com a nova regra, em vez de lutar para voltar ao passado. Como ninguém é profeta, é impossível prever quem está certo. De um lado, a revolução midialivrista de Ivana Bentes, de outro, a luta contra os patrôes dos sindicatos. No “lado do meio”, entretanto, há a atualização da imprensa perante o novo cenário, a hipótese defendida por alguns profissionais de que vai haver espaço para jornalistas com e sem diploma, na mesma proporção da variedade de discursos e meios de comunicação. Vale parafrasear mais uma vez Ivana Bentes em seu texto para o Trezentos: no dilema diploma-não-diploma, o que está decidido está decidido. Não tem mais volta.

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